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Influência Ismaili nos Batinis de Al-Andalus PDF
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Revista de Estudos da Religião março / 2008 / pp. 142-166 ISSN 1677-1222 Influência Ismaili nos Batinis de Al-Andalus Cecilia Cintra Cavaleiro de Macedo* [cavaleirodmacedo uol.com.br] Resumo Tratada frequentemente pela denominação genérica de Sufismo (conceito construído externamente e ocidentalizado a partir do termo tasawwuf), a espiritualidade islâmica guarda em si uma miríade de facetas, expressões e diferentes abordagens cujo estudo reserva problemas específicos que são pouco considerados pelos estudiosos do tema. A questão central deste trabalho é o estudo dos primeiros místicos de Al-Andalus (a Península Ibérica islamizada), chamados batinis, levantando possíveis influências xiitas, especialmente da corrente ismaili, através de textos e de missionários (da’i) que foram intencionalmente enviados a todas as partes do mundo islâmico. Estes missionários teriam vivido ocultos sob a proteção externa do ascetismo Sufi, especialmente a partir da queda do califado de Bagdá. Palavras-chave: Ismailismo, Sufismo, Al-Andalus, Islam, da’wa. Abstract Islamic spirituality, frequently referred to as Sufism (an externally constructed and Westernized concept based on the word tasawwuf), includes a myriad of facets, expressions, and different approaches, whose study raises specific issues which are rarely considered by Islamic scholars. The central question of this work is the study of the early mystics from Al- Andalus (the Islamized Iberian Peninsula). These mystics were refered to as batinis, indicating possible Shiite influences, particularly of the Ismaili sect, through texts and missionaries (da’i) which were intentionally sent to all parts of the Islamic world. These missionaries would have lived hidden under the external protection of Sufi ascetism, especially after the fall of the Caliphate of Baghdad. Keywords: Ismailism, Sufism, Al-Andalus, Islam, da’wa. * Doutora em Ciências da Religião – PUC-SP www.pucsp.br/rever/rv1_2008/i_macedo.pdf 142 Revista de Estudos da Religião março / 2008 / pp. 142-166 ISSN 1677-1222 O Estudo da Mística Islâmica A Mística1 enquanto fenômeno ou categoria de experiência humana (bem como seus produtos e expressões, sejam eles apresentados como obras literárias ou não) já nos oferece suficientes problemas como objeto de estudo. Tais problemas decorrem das mais diferentes dificuldades, dentre as quais podemos citar: a própria definição do objeto de estudo ou sua delimitação frente a outras produções semelhantes, sua classificação, além da delimitação entre seu âmbito e o dos demais fenômenos e experiências humanas. A diversidade de fenômenos e produções aos quais podemos atribuir o qualificativo de místicos complica ainda mais o quadro. Por fim, o estranhamento que nos invade, ao entrarmos em contato com um tipo de material que não necessariamente segue as regras lógicas e a ordem com a qual estamos acostumados, completa o quadro de dificuldades. Isto faz com que o estabelecimento de uma ou mais disciplinas específicas para o estudo deste objeto seja uma tarefa extremamente difícil. Ao tratarmos dos fenômenos e produções de cunho místico no seio do Cristianismo, pelo fato de estarmos mais acostumados à linguagem utilizada e mais familiarizados com o 1 Explico a preferência pela utilização do termo Mística, em razão de sua origem grega e apropriação latina, ainda que não exista nas línguas semitas (ao menos no árabe e no hebraico) palavra que corresponda exatamente a este significado. Ao consultarmos um dicionário comum verificamos que o termo Mística apresenta as seguintes definições: “estudo das coisas divinas e espirituais; vida religiosa e contemplativa; misticismo; crença ou sentimento arraigado de devotamento a uma idéia; essência doutrinária” (BUARQUE DE HOLLANDA, A. verbete Mística), o que indica que os termos Mística e Misticismo poderiam, grosso modo, ser utilizados como sinônimos. Porém, ao nos deslocarmos em direção a obras de referência mais especializadas, notamos que o termo Mística mantém suas relações com sua origem grega e utilização latina, implicando necessariamente no conceito de segredo ou mistério, o qual está intimamente relacionado ao sentido que lhe foi conferido inicialmente por Platão: “Até nossos dias, o significado religioso da palavra tem sido mais ou menos o derivado da maneira que Platão utilizou. Segundo este, a divindade é transcendente a nossa inteligência, entretanto, esta pode alcançar certo conhecimento daquela o qual, ainda que seja obscuro, é real e permite que os privilegiados adentrem a esfera divina”. (DE SUTTER, 1987: 619; verbete Mística). No âmbito das religiões monoteístas, o termo Mística foi utilizado e consagrado pelo pensador neoplatônico Pseudo-Dionísio Areopagita, em sua obra Teologia Mística (vertido para o latim como De Mystica Theologia), tendo sido largamente debatido e citado por todos os pensadores cristãos medievais. Por outro lado, o termo misticismo adquiriu em nosso idioma e em grande parte das línguas latinas um sentido pejorativo, associado a práticas mágicas e estados alterados de consciência. “Autores católicos costumam denominar estes processos independentes da especulação sistemática em busca de Deus de misticismo” (DE SUTTER, 1987: 629; verbete Misticismo), a fim de estabelecer a diferenciação. Ainda em relação à sua utilização no contexto islâmico, esta discussão é abordada por Titus Burkhardt e apresentada longamente em seu estudo Du Soufisme, p. 10 et seq. Aqui apresentamos a sua posição resumida: “O termo ‘Mística’ perdeu sua precisão por efeito do individualismo religioso, produto do Renascimento e, sem dúvida, também por um certo choque de rejeição ao Racionalismo. Entretanto, seu sentido original nunca se perdeu, ainda que lhe tenham atribuído com freqüência significações abusivas. Em todo caso, se Evágrio Pontico, Gregório do Sinai, Máximo Confessor e Mestre Eckhart – para não citar mais do que alguns exemplos – são ‘místicos’, os sufis também o são. O termo ‘misticismo’ aplica-se exclusivamente a uma variante muito especial e relativamente tardia da espiritualidade cristã” (BURKHARDT, In AL_YILI, 2001: 100, nota 1). www.pucsp.br/rever/rv1_2008/i_macedo.pdf 143 Revista de Estudos da Religião março / 2008 / pp. 142-166 ISSN 1677-1222 contexto no qual aquele tipo de pensamento se desenvolve, o estranhamento radical é, de certo modo, amortecido. Mas se, por um lado, a familiaridade facilita a compreensão da linguagem utilizada e da situação social envolvida, por outro, a tendência à interpretação dos fenômenos, relatos e textos em geral como meras produções religiosas – comuns e explicáveis pela chave teológica – pode fazer com que percamos aqueles elementos de originalidade propriamente mística (experiencial) e mistérica (iniciática) que sobrevivem abaixo da superfície da linguagem religiosa socialmente compartilhada. Na via inversa, ao passarmos ao estudo das expressões místicas de outras religiões que não são dominantes em nosso meio social, os elementos propriamente místicos saltam mais aos nossos olhos, reforçando o estranhamento. Entretanto, devido à dificuldade que se apresenta pela falta de familiaridade com o contexto da linguagem teológica das religiões não-cristãs, enfrentamos o risco de interpretar inadequadamente o significado social e cultural de imagens, ritos ou mensagens em geral. Isto pode condenar-nos a tomar equivocadamente por místicos elementos e imagens comuns àquela forma religiosa em geral. O estudo da mística islâmica, especialmente no Ocidente, está longe de ser um tema esgotado, classificado e propriamente conhecido. Tratada frequentemente pela denominação genérica de Sufismo (conceito construído externamente e ocidentalizado a partir do termo tasawwuf), a espiritualidade mística islâmica guarda em si uma miríade de facetas, expressões e diferentes abordagens, cuja análise reserva problemas específicos que são, de modo geral, evitados pelos estudiosos do tema, ainda que encontremos exceções. Conforme Burkhardt, “Parece-nos legítimo denominar o sufismo ‘mística muçulmana’, sempre com a condição de utilizar o termo mística em seu sentido original e preciso2: o sufismo tem por objeto um conhecimento cuja natureza íntima é um ‘mistério’ que não pode ser plenamente comunicado pela palavra” (BURKHARDT, Introdução, In AL-YILI, 2001: 2). Segundo Poliakova, o estudo desse importante fenômeno apresenta dificuldades consideráveis, porque o Sufismo é caracterizado por um grande número de interpretações individuais (POLIAKOVA, 2003). Poliakova levanta ainda uma dificuldade adicional, posto que uma das grandes questões seria, a seu ver, a aparente discrepância entre a terminologia utilizada na poesia e nos tratados mais especulativos. Mas muito além dos problemas apontados pela autora, e antes mesmo de buscar pontes entre a literatura 2 Explicado acima na nota 1. www.pucsp.br/rever/rv1_2008/i_macedo.pdf 144 Revista de Estudos da Religião março / 2008 / pp. 142-166 ISSN 1677-1222 especulativa e a poesia ou de estabelecer as diferenças entre os autores individuais (como faríamos em qualquer corrente mística ou filosófica), cabe indagar se o termo genérico Sufismo é uma categoria justa, aplicável e adequada às diferentes expressões da mística islâmica. Cabe indagar se não seria esta, ao menos como é utilizada pelos “orientalistas” ocidentais, uma categoria vaga que se refere genericamente a toda e qualquer expressão mística nos moldes da tradição islâmica, aguardando por estudos mais detalhados que diferenciariam uma série de formas mais específicas a partir de novos critérios. Diferentes correntes do sufismo são caracterizadas por uma extrema variedade e um único Sufismo jamais existiu. Esta é a razão pela qual, ao tentar distinguir os princípios que são mais ou menos comuns a todas as correntes, inevitavelmente chegamos a um (alto nível) de abstração que só aproximadamente reflete o real estado das coisas. (BERTELS apud POLIAKOVA, 2003: 1) A nosso ver, a adequada compreensão da mística islâmica não pode ser atingida independentemente do estudo da construção e desenvolvimento do Islam enquanto tal. Com isto queremos dizer que não podemos olhar para as expressões da mística islâmica como uma sabedoria desprovida de um arcabouço teórico ao qual necessariamente se filia, bem como de expressões literárias e imagéticas já sedimentadas, sob pena de interpretarmos erroneamente a intenção daqueles autores. Consequentemente, esse arcabouço teórico está relacionado também às diferentes expressões regionais, às correntes de pensamento, às escolas de interpretação e aos movimentos teológicos, simultâneos ou que se sucederam, no processo de constituição do Islam enquanto religião estabelecida com pretensões universais. Conforme a crença, Maomé já previra as diversas facetas nas quais o Islam iria se desdobrar. As 73 seitas previstas pelo hadith relatado por Abdullah bin Amar tomam forma através do curso da história, oferecendo-nos a riqueza de interpretações que compõem o universo da espiritualidade islâmica. Do ponto de vista dos estudiosos do mundo ocidental cristão, poucas diferenças são levadas em consideração além das mais óbvias, apresentadas entre os ramos xiita e sunita. Mas apesar de compartilhar da mesma crença, www.pucsp.br/rever/rv1_2008/i_macedo.pdf 145 Revista de Estudos da Religião março / 2008 / pp. 142-166 ISSN 1677-1222 dos mesmos compromissos básicos e obrigações, a Umma3 apresenta uma série de variantes adicionais, devidas tanto ao estabelecimento do Islam sobre as mais diversas culturas preexistentes, quanto aos diferentes desenvolvimentos filosófico-teológico-jurídicos. Deste modo, o Islam do Maghreb não é o Islam da antiga Pérsia e não pode ser analisado com as mesmas categorias. Assim, a mística islâmica que se há de encontrar em um lugar não será de modo algum idêntica à que encontraremos em outro. Mesmo em termos de divisão política, há que lembrar que, durante certos períodos da Idade Média, chegamos a contar com as orientações concomitantes de três califados comandados por dinastias muito diferentes entre si: Bagdá (Abássida), Cairo (Fatímida) e Córdoba (Omíada). Apesar desse fato, temos sempre que considerar que as influências das diferentes escolas de pensamento atravessaram rapidamente terras e mares, durante o período medieval, nas bagagens de peregrinos, viajantes e comerciantes. No caso particular deste trabalho, interessa-nos o chamado Islam Ocidental, e mais especificamente, Al-Andalus. Contando com no mínimo sete séculos de influência e poderio islâmico, ainda que concentrados num processo um pouco mais tardio, e apresentando, talvez, uma gama mais restrita de tendências, o universo de influências teóricas que podemos encontrar na Espanha Medieval não é de todo diferente do encontrado no restante do mundo islâmico medieval. Por esta razão, ao analisarmos a produção ibérica devemos considerar as mesmas tendências intelectuais que encontramos no Oriente, equivocando-se os estudiosos que desejam ver uma unidade artificial construída sobre a dispensa das diferenças que os grandes místicos ibero-muçulmanos ofereceram. À exceção de Ibn Arabi (Al-Sheikh Al-Akhbar), o qual em si já representa uma síntese de seus antecessores, a espiritualidade andaluza é pouco explorada. Isto ocorre não somente no Ocidente, mas também no Oriente islâmico. Disso decorre que suas origens encontrem- se ainda mergulhadas em sombras que confundem nosso olhar mais analítico quanto às influências que, por ventura, veio a incorporar. Dentre estas influências, chama-nos a atenção a possibilidade de que o pensamento xiita Ismaili tenha sido muito mais expressivo do que a primeira vista podemos avaliar, seja através das obras que circulavam livremente na época e região, seja através da presença física dos da‘i – os missionários fatímidas: 3 Umma: Comunidade islâmica. www.pucsp.br/rever/rv1_2008/i_macedo.pdf 146 Revista de Estudos da Religião março / 2008 / pp. 142-166 ISSN 1677-1222 Em meados do século 3/9, os Ismailis organizaram um movimento político- religioso secreto designado al-da’wa (a missão) ou, mais precisamente, al-da’wa al-hadiya. (...) A mensagem revolucionária da da’wa Ismaili foi propagada sistematicamente por uma rede de da’is, ou missionários político-religiosos em diferentes partes do mundo islâmico, da Transoxânia ao Yemen e Norte da África (DAFTARY, 1999: 29). Estes missionários enviados a todas as regiões, bem como as obras que consigo levavam, podem ter deixado sua marca com fortes tintas no pensamento ibérico, ainda que a maioria dos estudiosos não tenha atentado para este fato, e esta corrente de pensamento se encontre historicamente mesclada com a imagem geral do Sufismo na península. Mas, uma vez que a atividade de propaganda fatímida foi tão influente no norte da África, é forçoso pensar que tenha também atravessado o estreito de Gibraltar. Conforme Alves, Para além do clima de crise e dissolução política que reinava na península islâmica, o Gharb, como zona periférica mais distante do controle teológico do poder central Almorávida, fervilhava da influência das idéias sufis, em boa parte trazidas do Oriente, a que se adicionavam, não raro, contribuições tingidas de xiismo, principalmente ismaelita (ALVES, 2001: 78). O próprio termo Sufismo apresenta diferentes significados conforme os autores que o utilizam. Entendido genericamente como mística islâmica organizada em ordens esotéricas, estruturadas segundo regras e hierarquias definidas em torno de um sheikh ou pir ao qual os discípulos devem obediência, a história mostra que nem sempre foi assim. Num primeiro momento, o termo se referia aos ascetas, na maior parte das vezes solitários e mendicantes. Denominados Ahl al-Sufa, numa fase inicial, era associado aos homens que aguardavam pela mensagem de Maomé e, mais tarde, esperavam nas mesquitas pela caridade alheia. Este breve período foi caracterizado por seu caráter ascético e eremítico, ainda que o Corão condene textualmente o afastamento da sociedade. Numa fase um pouco posterior, a mística islâmica passa a assumir uma feição mais intelectualizada que veio a nos legar pensadores profundos, ainda que a filosofia racional moderna não os reconheça enquanto filósofos. Tais ascetas e mesmo os grandes pensadores eram, na maior parte das vezes, homens também solitários que eventualmente se cercavam de um círculo restrito de www.pucsp.br/rever/rv1_2008/i_macedo.pdf 147 Revista de Estudos da Religião março / 2008 / pp. 142-166 ISSN 1677-1222 discípulos. Podemos notar que a busca do “companheiro de jornada” é tema recorrente, tanto na literatura, quanto nas biografias dos grandes santos ou pensadores. Posteriormente, estes discípulos vieram a conformar ordens regulares a fim de eternizar o ensinamento ou o método dos grandes mestres, na maior parte das vezes, somente após suas mortes. Em maior ou menor grau, dependendo do momento histórico que o Islam como um todo ou alguma província determinada atravessava, os círculos místicos passaram a ser vistos pela hierarquia política e jurídica como ameaças. Isto fez com que, na tentativa de resguardar-se de acusações e perseguições, os Mestres do Caminho Místico se revelassem cada vez mais adeptos da ortodoxia. Sabemos que falar em ortodoxia no Islam não é fácil, uma vez que não há estrutura hierárquica estabelecida e as obrigações básicas já estão previstas no Corão. O conceito mesmo de ortodoxia foi sendo modificado, variando histórica e geograficamente, conforme o grupo que assumia o poder. Mas essa ortodoxia, em grande parte da história e em grande parte das regiões administradas pelo Islam, foi majoritariamente sunita. Este processo fez com que o tasawwuf ou Sufismo tenha sido entendido por muitos autores como “a espiritualidade inerente ao Islam sunita”, em contraposição à espiritualidade xiita, corrente que, pelo fato de carregar consigo desde seu início uma proposta de regra de vida mais dedicada à espiritualidade, considerava a si mesma “a autêntica depositária da espiritualidade islâmica” (SEGOVIA, 2005: 34). Vale ressaltar que, nos dias atuais, a maioria das ordens Sufis ainda em atividade reforça sua independência frente a sunitas e xiitas, advogando representarem uma vertente independente no Islam. Os problemas principais que a busca mística apresentava para as autoridades estabelecidas partiam do fato de que aqueles círculos se dedicavam às atividades de interpretação do texto corânico de um modo mais livre dos preceitos e regras religiosas, tal como eram entendidas pelo vulgo e pelos teólogos. E mais: esta atividade tinha lugar, não raramente, em comunidades apartadas das grandes instituições religiosas coletivas, o que gerava, obviamente, uma maior desconfiança por parte das autoridades estabelecidas. Para além destas questões, um sério assunto teológico é provocado pela busca mística, precisamente um problema em torno da relação entre Revelação, Profecia e Santidade. Uma vez que www.pucsp.br/rever/rv1_2008/i_macedo.pdf 148 Revista de Estudos da Religião março / 2008 / pp. 142-166 ISSN 1677-1222 Maomé é o Selo da Profecia4, ninguém pode afirmar ter recebido orientação direta sem despertar suspeitas de heresia. Em um sem-número de casos esta questão teológica fundamental, supostamente desrespeitada pelos círculos místicos, gerou problemas em relação à ortodoxia dos fuqaha5, e grande parte das acusações formuladas contra os místicos no Islam esteve relacionada a este ponto específico. Como pensar o caminho místico sem mediações, ou o contato direto com a Luz divina, se a Profecia está encerrada com o Profeta Maomé? Muitos autores, tanto os místicos quanto os chamados teólogos racionais, dedicaram-se a tentar diferenciar profecia de santidade6 e explicar os tipos de uma e de outra, com os mais diversos fins. Uns o fizeram para justificar- se perante a comunidade, como no caso dos místicos como Ibn Arabi, definindo a si próprio como selo da santidade; outros se dedicaram ao assunto a fim de que este dogma não fosse abalado por afirmações sugerindo deificação ou contato direto com Deus, como os teólogos frente à famosa frase “Ana Al-Haqq” ("Eu sou a verdade") de Hallaj, a qual terminou por valer-lhe a vida. Por advogar a possibilidade de continuidade da Revelação profética, ainda que não com a mesma força que inspirou o profeta Maomé, o Islam xiita em geral e, em especial a corrente Ismaili, foi visto com reservas por aqueles que acreditavam que toda a verdade já estava revelada no Corão, que professavam a interpretação literal das escrituras e confiavam na retirada radical da inspiração profética do mundo humano após seu selo, Maomé. A simples walaya (proximidade de Deus, traduzida normalmente por Santidade) advogada pelo Sufismo, dependendo da extensão que vem a assumir, pode já ser o bastante para configurar ameaça aos olhos dos juristas mais extremados. As ordens esotéricas, muitas delas já estabelecidas a partir do século XIII em torno de um mestre ou wali reconhecido pela comunidade ao qual deviam obediência, concorriam também, enquanto comunidades autônomas dotadas de regras de vida particulares, com a estrutura hierárquica jurídico- política estabelecida, gerando mais suspeitas. Porém, se comparamos as suspeitas que 4 O Último entre os Profetas. 5 Fuqaha – juristas; plural de faqih. 6 Este tema é discutido também em meu artigo anterior “Profecia e Santidade em Heschel e Ibn 'Arabi”. Último Andar, São Paulo, n.10, p. 59-77, 2004. www.pucsp.br/rever/rv1_2008/i_macedo.pdf 149 Revista de Estudos da Religião março / 2008 / pp. 142-166 ISSN 1677-1222 recaíam sobre as ordens sufis à declarada intenção de eliminação de algumas das correntes do Islam – situação pela qual passaram particularmente os ismailis – a situação dos sufis poderia parecer confortável. Isto se deveu especialmente à perseguição que se instalou em diversas regiões, especialmente após a queda do califado fatímida (909-1171) e da anexação do Egito por Saladino. Vale observar que a dinastia fatímida foi fundada originariamente a partir da Ifriqya, na qual um dirigente, legitimando suas pretensões por sua descendência do Profeta através de sua filha Fátima e Ali ibn Abu Talib, declarou-se califa. A partir de seu estabelecimento em Kairouán, estendeu seu poder a todo o Maghreb (Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia); os fatímidas entraram no Egito em 972, estabelecendo a capital em Al Qahira (Cairo) e seguiram conquistando localidades vizinhas chegando a governar da Tunísia à Síria, tendo aportado até mesmo à Sicília. Com a supressão do califado, muitos ismailis passaram a viver ocultos, desenvolvendo secretamente suas reais crenças religiosas sob muitos disfarces. As relações entre os Ismailis e outras comunidades religiosas do mundo Islâmico foram frequentemente caracterizadas por longos períodos de conflito, uma vez que eles foram muitas vezes entendidos e perseguidos por outros como “hereges”. Sob tais circunstâncias adversas, os Ismailis foram obrigados através de grande parte de sua História a praticar taqiyya, ou dissimulação por precaução, ocultando suas verdadeiras crenças religiosas ou adotando diferentes aparências externas, incluindo Sufi, Sunita, xiita duodecimano ou mesmo Hindu, para sua própria proteção (DAFTARY, 2001, s.pp.): No processo de repressão aos concorrentes levado a cabo pelos abássidas e frente à política de aniquilação de qualquer vestígio do poderio fatímida, o tasawwuf representou um excelente esconderijo para os místicos das mais diversas origens e diferentes crenças. No caso específico da Península Ibérica, o fato de que os primeiros místicos – consideramos aqui aqueles que precederam a Ibn Arabi – foram referidos sempre como batinis, reforça mais ainda nossa hipótese, uma vez que o termo que se aplica tanto aos ismailis, porque www.pucsp.br/rever/rv1_2008/i_macedo.pdf 150 Revista de Estudos da Religião março / 2008 / pp. 142-166 ISSN 1677-1222 afirmavam que o Corão continha um sentido oculto (batin), como aos sufis, que acentuavam o aspecto interior (batin) da religião (STERN, 1983). O Pensamento Ismaili A teologia ismaili foi elaborada primeiramente sob a dinastia fatímida estabelecida no Egito. A partir daquele pólo, missionários propagandistas (dā‘ī) foram enviados a diversos lugares, ganhando a simpatia de diversos grupos descontentes (HALM, 1996: 91-93). O reinado de Al-Mutansir (1036-94) foi um tempo de particular prosperidade, pois, ainda que tivessem perdido o controle político das regiões do norte da África, conseguiram um número imenso de conversões. Estes primeiros ismailis também lançaram as bases das suas tradições intelectuais elaboradas posteriormente. Ainda no período fatímida, Fizeram uma distinção fundamental entre os aspectos exotéricos (zahir) e esotéricos (batin) das sagradas escrituras e mandamentos religiosos, sustentando que todo significado literal implica uma realidade interna oculta (haqiqa). Essas verdades imutáveis, as verdades comuns e eternas das religiões reconhecidas no Qur’an foram efetivamente desenvolvidas, em termos de um sistema de pensamento gnóstico pelos primeiros Isma‘ilis. Este sistema representa um mundo esotérico de realidade espiritual, uma realidade comum às grandes religiões monoteístas da tradição Abrahâmica (DAFTARY, 1996: 2). Em linhas gerais, certas particularidades da crença ismaili podem ter propiciado a facilidade de diálogo entre diferentes correntes e sistemas religiosos e filosóficos. Dentre elas, figuram certas idéias que representam verdadeiras pontes entre as correntes místicas das diferentes tradições. Neste sentido podemos citar: A.Pretensão universalista, acreditando poder aprender de diferentes fontes, especialmente com as diferentes religiões e filosofias inspiradas. Essa característica conferiu amplas possibilidades de trânsito em tradições místicas de diferentes religiões. www.pucsp.br/rever/rv1_2008/i_macedo.pdf 151